quarta-feira, 14 de outubro de 2009

ANOITECER DE VERÃO OUTONAL
(UM CONTO EM QUATRO ACTOS)


(acto I)
Rua fora, os néons das lojas a contestar a luz dos candeeiros públicos, a caminho de casa com um frango assado no saco. No passeio à minha frente, uma avó e duas crianças. O miúdo, mais novo que a irmã, pergunta:
- Avó, em casa posso calçar os ténis novos?
O consentimento é quase inaudível mas a réplica da menina não.
- Não percebo porque é que arranjas sempre coisas novas para ele e para mim não.
- Porque TU já tens dois ténis! E eu só tenho um! – adianta-se o irmão.
A avó permanece calada. A irmã, sempre serena, aplaca o ciúme.
- São giros? – condescende a irmã.
- Buéda fixes!
- De que cor são?
- Às cores – responde ele.
- Que cores?
- São muitas!
- Mas quais?
- Não me lembro!
Estou em plena ultrapassagem ao trio da avó calada, da menina calma e do miúdo com ténis muita fixes dos quais já não se lembra. Após um breve silêncio, regressam as vozes.
- Azul?! – insiste a irmã.
- Já te disse que não me lembro!!!
Ultrapassei-os e começo a afastar-me.
- Verde?
- Não sejas chata! Já disse que não sei!

(acto II)
Deixo de ouvir. Dois quarteirões à frente, uma mãe empurra com as duas mãos um carrinho de criança na minha direcção. Não é a primeira vez que a encontro. Tem sempre um cigarro preso entre os dedos, a fumegar para onde o vento sopra. Às vezes é para cima da criança, invariavelmente calada. Cruzamo-nos ao estilo comboio-bala.

(acto III)
Mais à frente, um homem segura uma caixa junto ao carro. Junto à porta traseira, uma mãe instala a filha na cadeirinha interior.
- VÁ LÁ QUE JÁ SÃO SETE E MEIA! ENTRAAAA!
A menina inicia um choro contínuo. A mãe persegue na irritação. O pai segura a caixa. O choro soa como uma sirene de bombeiros que se ofusca lentamente à medida que me afasto e galgo o resto dos metros que faltam até casa. O frango ainda vai quente.

(acto IV)
A Maria acabara de comer. Recebe-me com um sorriso enorme. Quatro dentes brilham, dois em baixo, dois em cima. Deixa os pais comerem o frango enquanto explora o chão da cozinha atrás de uma bola. Bate com a cabeça num pé da mesa. E começa um choro que parece uma sirene de bombeiros. É resultado de sono, concluímos, falta da sempre necessária sesta que não fizera. Todos os truques de adormecer ou acalmar falham. A sirene não termina. Até uma mãe salvadora lembrar-se de cheirar uma fralda. Cheia e a fazer arder um rabinho assado. O pano desce. A peça de verão outonal terminou. Os críticos que lhe façam os julgamentos morais.

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