sexta-feira, 25 de setembro de 2009

SUPER-HERÓIS AMEAÇADOS


Durante a gravidez, além das escolhas musicais, também ocorrem mudanças na secção de papel. De um dia para o outro, na estante do escritório esvazia-se parte de uma prateleira para acomodar livros de pediatria e revistas sobre pais e filhos. Apertados numa das extremidades estão agora as lembranças dos meus primeiros anos. Apercebo-me de que os álbuns do Homem-Aranha e do Batman olham de esguelha para os novos inquilinos que crescem assustadoramente de número e volume com o avanço da gravidez. Sinto que os meus super-heróis estão amedrontados com o espaço decrescente e por poderem acabar a carreira no caixote da reciclagem. Num grito de revolta, decido que é preciso ajudá-los e inverter a tendência urgentemente. Vou directo à livraria para voltar a comprar, décadas depois, um novo volume do Cavaleiro das Trevas, do rapaz que atira teias aracnídeas, do Demolidor ou até de um qualquer herói contemporâneo que me desperte a atenção. Passada uma hora de aturada escolha, saio da loja sorridente. No saco tenho mais um livro de pediatria, A Menina do Mar de Sophia de Mello Breyner Andresen (para ler à barriga), e um CD-Baby não-sei-quê. Chego a casa e entro silencioso. Tenho medo que o Batman e o Aranha estejam escondidos algures para dar cabo de mim, traidor sem remissão possível.
Para me acalmar entro no quarto de cama, visto o pijama, pressiono o play do leitor de CD, pego num livro e deito-me. Pelo ar ecoa uma língua ininteligível acompanhada de sons suaves. Leio a primeira frase e recordo-me novamente da minha infância. "Uma vez, quando eu tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta Virgem intitulado Histórias Vividas uma gravura maravilhosa. Mostrava uma jibóia a engolir uma fera." Baixo o som proveniente das colunas e leio em voz alta o primeiro capítulo de O Principezinho, de Saint-Exupéry. Tenho uma mão assente numa barriga grávida. Procuro sentir os pontapés do bebé. Quero acreditar, como vem nos manuais, que são resposta ao timbre da minha voz. Um ruído de fundo interrompe a leitura. São soluços convulsos, provenientes do escritório. A gravidez, dizem, é um estado de graça. Mas há alturas em que apetece dizer: importam-se de explicar onde está a piada? É que o o Batman e o Homem-Aranha parecem não achar graça nenhuma.

2 comentários:

sofia vintém disse...

se lhes contaste "o principezinho" eles não ficaram assim tão zangados, deixa!
lá há super-herói que não tenha essa história no imaginário? :)

Paulo M. Morais disse...

eu sei lá. parece-me que eles me olham de lado!