segunda-feira, 27 de julho de 2009

ENTRE O CÉU E O PURGATÓRIO


E depois da saída da Maria foi só felicidade. Ou quase. As horas do pós-parto tiveram tudo para se tornarem traumáticas. Porque há uma placenta teimosa que se fragmenta e obriga a mãe a continuar amarrada a uma cama, com ocitocina para expelir os restos indesejados. Porque se acumulam dores e cansaço extremos à necessidade de começar a cuidar de uma bebé. Porque acrescem as dificuldades da alimentação e a Maria só consegue pegar inconsistentemente numa mama. Porque a visão da mãe torna-se turva, desfocada, duplicada e nota-se uma fraqueza geral de viver apenas à custa de soro desde há 20 horas seguidas.
Surge uma sofreguidão de ver tudo resolvido. Sinto-me impotente para ajudar a aliviar o sofrimento alheio. Depois de um esforço tão grande, não era esta a medalha de desconsolo que a Andreia merecia. As intervenções médicas posteriores provocam dores maiores do que as do parto. Novamente posto do lado de fora do quarto, desta vez não posso sequer estar perto para apertar uma mão e relembrar para que respire com calma. Resta-me regressar para ao pé de mãe e filha após uma sessão de “tratamento”. Tento serená-las. Ao fim de algum tempo, a Maria acalma o choro e adormece ao meu colo pela primeira vez. E a Andreia também consegue, finalmente, dormitar um pouco. Coloco a bebé no berço e deixo-me cair na poltrona. Entre o cansaço rasga-se um sorriso à força. Fecho as pálpebras, imerso na gloriosa sensação de ter auxiliado as minhas meninas a adormecer. Há raras alturas em que nos sentimos realmente úteis.
Quando acordo nada mudou. A Andreia permanece na sala do recobro, a Maria continua a ter dificuldade de mamar. Espera-se ainda por uma cama vaga na ala de internamento. Regresso a casa quase 24 horas depois de ter saído. No hospital, a Andreia suporta sozinha uma noite sofrida, com mudanças de cama, dificuldades em alimentar a Maria, um médico muito conceituado que utiliza um humor desfasado.

- Então quantas pessoas está a ver? – pergunta de chofre logo após entrar na sala.
- Desculpe? – responde uma mãe atarantada por uma montanha-russa de emoções e fragilizada pelos eventos subsequentes ao parto.
- Sim, quantas pessoas está a ver? – repete o médico.
- Não estou a perceber, senhor doutor.
- Então não é a senhora que se queixa de ver a dobrar?

Na noite seguinte, será o mesmo médico a achar indevida a intervenção médica programada. Estava a escassos minutos de acabar o turno. Em jejum, a Andreia regressa para junto da Maria. O médico regressa a casa ou, quiçá, às consultas de madrugada no consultório privado. De manhã, colegas torcem o nariz à não realização da curetagem e levam a sério a questão óptica, enviando a Andreia para testes noutro hospital. Nesse princípio de tarde fico pela primeira vez “sozinho” com a Maria, num quarto de hospital público com vista para o Cristo Rei. Ela tem dois dias de vida.
Despistado e minorado o problema da visão, deixada a questão "placentária" ao cuidado da natureza (sem curetagem ou medicamento, portanto), chegará tempo de finalmente rumarmos os três a casa. Na nossa primeira semana de parentalidade, entendemos o que é um apoio solidário de avó. Agradecemos com sorrisos sempre que possível. E com o colocar-lhe no colo uma bebé que nos ensina, verdadeiramente, o que é amar.

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