segunda-feira, 20 de julho de 2009

PARTO FELICIDADE


O jogo da Playstation está parado mas subsiste a dúvida sobre se devemos ir já para o hospital. Aparentemente a bolsa amniótica rompeu, mas as contracções ainda não se faziam sentir. Telefonamos para uma linha de apoio onde a enfermeira de serviço (a que nos ministrara o curso de preparação para o parto) aconselha a rumarmos ao hospital. É preciso monitorar possíveis infecções. Actuamos sem stresse. Há tempo para a grávida tomar um duche rápido, colocar desodorizante (afinal de contas num parto deve suar-se bastante), ver se o esquentador fica desligado.
Ao sair e fechar a porta de casa estávamos a dar entrada num mundo diferente, sem nos apercebermos bem da dimensão do passo. A admissão nas urgências do São Francisco Xavier é faseada. Primeiro a mãe, vá-se lá compreender porquê. O pai espera cá fora, ainda acompanhado pelo amigo-motorista-companheiro de PES. Digo-lhe que estou bem, que vá descansar para casa. O dia seguinte será de trabalho, para quem não for pai nessa noite.
Passados minutos chamam a AV pelo altifalante. Intrigado, meto a cabeça entre as portas vai-e-vem da urgência e espreito. Vejo um homem vestido de bata azul e uma mulher de bata amarela.

- Chamaram por uma Andreia? – pergunto com um ar meio surpreso.
- Ela está aí fora? – inquere o enfermeiro.
- Er... não... entrou para aqui faz 15 minutos...

Mau, querem ver que eles perderam uma futura mamã? Fico ali especado à espera de que apareça o Sherlock Holmes para solucionar o caso mas afinal não é preciso. Lá descobrem que a malvada tinha ido à casa-de-banho. Não se pode confiar nas grávidas, estão sempre a mudar de sítio.
Finalmente permitem-me entrar. Dão-me coordenadas até ao quarto da AV mas bem que poderiam entregar um GPS que seria mais fácil. O primeiro percurso, já se sabe, é sempre o mais difícil e longo. Mais tarde, ainda hei-de percorrer vezes sem conta este mesmo trajecto quase de olhos fechados.
A AV está deitada na marquesa com o soro a invadir-lhe as veias. Reparo no espaço amplo e desafogado, nas luzes suaves, na poltrona reclinável à espera do pai. Penso que é um quarto mais simpático do que muitos daqueles em que estivemos durante a nossa volta ao mundo. E concluo que é um excelente sítio para dar a volta à nossa vida.
As contracções estão espaçadas e os dedos de dilatação ainda distantes do necessário. Temos o nosso plano de parto na ponta da língua. A AV vai comunicando com o enfermeiro que volta e meia aparece para controlar os sinais do CTG. Os minutos da madrugada esticam e a certa altura é preciso permitir a introdução da ocitocina para acelerar o processo. As dores aumentam e é difícil dormitar. Acedemos a que nos seja explicado o procedimento e consequências da epidural. Percebemos pela primeira vez que haverá controlo dos membros inferiores durante o parto. Saio para que efectuem a técnica.
A epidural demora a fazer efeito. Passam 45 minutos e a dor permanece. A anestesiologista de serviço está ocupada noutro caso, é necessário aguardarmos que regresse para rectificar a dosagem. Apesar do esforço heróico da AV, as dores intensificam-se e carregamos timidamente no botão para chamar alguém. Surge a enfermeira Felicidade. Assenta-lhe bem o nome. É a ternura em carne e osso. Analisa a AV e percebe que a dilatação foi mais rápida do que o esperado. Está tudo pronto. Faz-lhe uma festa na testa enquanto lhe diz coisas carinhosas. Apetece-me abraçar a senhora, naquele momento irrepetível. Ela chama as colegas que nos vão colocar a Maria nos braços.
Calha-nos a versão feminina e hospitalar da A-Team. As três enfermeiras perfumam o quarto de boa disposição. Pergunto o porquê de se chamarem Equipa A? Dizem-me que é por serem a equipa do Amor, Alegria e Amizade. E ali leram a sina da Maria, mesmo antes de ela saltar cá para fora. Começou por parecer preguiçosa a moça. A AV recebia incentivos e elogios de todo o lado – “Assim mesmo! Força! Lá em baixo, isso! Boa!” – mas nada de Maria cá fora. O tempo passa e a Equipa A resolve chamar o médico de serviço. Surge um homem de cabelo encaracolado e ar bonacheirão, acompanhado de mais um obstetra e dois jovens internos. Toma conta da ocorrência e pede para o pai sair por um momento. Do lado de fora, porta fechada, os segundos eternizam-se. Envelheci séculos até me mandarem reentrar.
Rejuvenesço assim que vejo as mãos do obstetra-parideiro a retirarem a Maria para este mundo exterior. O sangue, desta vez, não me incomoda. Sou novamente uma criança quando a ouço chorar pela primeira vez. E quase deixo de ter existência física quando pousam a Maria ao colo da mãe. Apetece-me abraçar toda a gente mas já só consigo fixar, entre uma ou outra lágrima, uns olhinhos pequeninos fechados junto ao peito de uma mãe de olhos exaustos mas imensamente felizes.
O médico de cabelos encaracolados divide o tempo entre assegurar-se que tanto mãe como bebé estão bem. Exibe um sorriso glorioso por ter contribuído para trazer mais uma vida, enquanto o colega cose a ex-grávida. Explica todos os quês e porquês. A Maria não saia por ter o cordão em volta do pescoço. Houve necessidade de ventosa e “impunha-se” realizar cortes para auxiliar a saída. E já fora do centro nevrálgico das urgências, o médico ainda gasta um pouco do precioso tempo para dar explicações ao tio da Maria e dar-lhe os parabéns pelo óptimo comportamento dos pais.
No quarto, o espaço amplo concentra-se no corpo de um ser com menos de meio metro, nascido às 12 horas e 25 minutos. E somos três que lá cabemos, num abraço comum que contém em simultâneo todas as palavras belas que existem e as que estão por ser inventadas.

3 comentários:

Tita disse...

Simplemente adorei!!! Chorei muito... de emoção... quero muito sentir tudo isso... e muito mais.

Beijões de uma tia babada

post_it disse...

Ó pá... não é nada bonito fazer chorar a tia clau deste lado do monitor, tá bem?

Simplesmente: LINDO!

beijinhos aos 3

Paulo M. Morais disse...

Tá bem, então para a semana eu conto o pós-parto. Acho que essa parte já não vai dar muito para chorar... ;-) (tadinha da mamã da Maria).