quinta-feira, 9 de julho de 2009

JOGO INTERRUPTUS


Já passava da meia-noite. Lá fora fazia frio mas dentro da sala estava um calor abrasivo. Um jogo fantástico, a transbordar de golos, a culminar uma eliminatória memorável. Eu agarrado a um comando, o Heitor agarrado a outro. Sorrisos, urros e esgares para o que se passava no ecrã. A nossa tradicional simulação PES – para as leigas trata-se de um videojogo de futebol para a PlayStation – da Liga dos Campeões vivia um dos momentos mais altos da já longa história.
A porta da sala estava fechada e nós abafávamos a emotividade ao máximo possível. Tarefa difícil. Estava a ser um daqueles jogos em que apetecia mandarmo-nos para o chão por causa de um golo falhado ou marcado. Mas a alguns metros de distância, na cama do meu quarto, dormia uma grávida.
A meio da segunda parte, entre suores e frases ao estilo “que granda jogão... incrível!!!!!”, chamam-me do corredor. Como grande profissional PES, obviamente esperei pela confirmação do apelo antes de largar o comando. Ele veio novamente e lá carreguei na temível tecla “pause”. Aos 73 minutos de jogo saí do estádio e dirigi-me à casa de banho. Encontrei uma grávida de 39 semanas com a impressão de lhe terem rebentado as águas. Pensei nas possibilidades de aplicar um penso, ou meter uma rolha, qualquer coisa que vedasse as tais águas por mais alguns minutos. Mas perante o ar de relativa preocupação da mãe, achei melhor não lhe comunicar as propostas.
Em vez disso fiquei ali mais uns instantes a confirmar que era mesmo verdade. Que a Maria me estava a interromper um jogaço da Liga PES. Depois regressei ao estádio.

- Parece que vamos ter de adiar o fim do jogo. A Maria está a caminho.

Aguardei expectante por uma súplica do outro lado, à laia de “e achas que não dá para acabar?”, mas o Heitor já estava a levantar-se para se ir calçar e nos levar ao hospital. Raça do homem e a sua dedicação mal direccionada! Então não era mais importante terminar o jogo?!?
Reunimos calmamente o material necessário para a ocasião e lá partimos os três (ou os quatro), noite dentro, por uma estrada quase vazia até ao hospital. Esperançoso, deixara a consola ligada, sustida naquele odioso momento de pausa, para retomar o prélio assim que possível.
Quando regressei a casa, quase 24 horas depois, deitei-me no sofá para descansar da montanha-russa em que andara. Notei a luzinha verde na consola e lembrei-me do jogo inacabado. A memória contrapôs-me o bebé e a mãe que deixara no hospital. Pouco depois adormeci.
Na manhã seguinte, antes de rumar ao encontro da recém nascida e ex-grávida, desliguei a consola. Acho que os jogadores virtuais ainda não me perdoaram. Mas quando a Maria foi maiorzinha, deixem estar que eu apresento-lhes a verdadeira culpada.

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